Jean-Jacques von Allmen

 


Entre a Palavra e a Liturgia: o teólogo que ouviu com reverência e celebrou com esperança

Compilação e Edição por Aristarco Coelho

Raízes e Formação: um espírito germinado nos Alpes

Jean-Jacques von Allmen nasceu em 1917, na cidade suíça de Lausanne. Filho de uma tradição protestante fortemente marcada pelo espírito da Reforma, desde cedo foi exposto a uma fé que valorizava a centralidade das Escrituras e a responsabilidade pessoal diante de Deus. A Suíça da primeira metade do século XX, dividida cultural e linguisticamente, também moldou sua sensibilidade teológica: von Allmen cresceu entre o mundo germânico e o latino, entre as montanhas da interioridade e os amplos horizontes do pensamento europeu. Estudou teologia na Universidade de Lausanne e posteriormente no prestigiado Institut Protestant de Paris. Durante esses anos de formação, entrou em contato com a teologia de Karl Barth, que influenciaria profundamente sua maneira de pensar a revelação e a centralidade da Palavra de Deus. Contudo, von Allmen manteria um tom mais pastoral e litúrgico em seus escritos, buscando um equilíbrio entre a profundidade teológica e a vida concreta da comunidade cristã.

Ministério Pastoral e Ensino: o teólogo com cheiro de ovelha

Ordenado pastor da Igreja Reformada, von Allmen exerceu ministério pastoral em Neuchâtel e também na célebre cidade de Estrasburgo. Ali, em meio à reconstrução da Europa do pós-guerra, tornou-se uma referência na formação de líderes cristãos e na reflexão litúrgica. Seu ministério se distinguia por uma rara combinação de erudição acadêmica e sensibilidade devocional. A pregação, para ele, não era apenas comunicação de ideias, mas encontro vivo entre o Deus que fala e o povo que ouve. Foi justamente essa convicção que o levou a escrever algumas de suas obras mais influentes, como Homilética, em que resgata a dignidade e a profundidade do sermão cristão em uma época que começava a tratá-lo com desdém. Seu compromisso com a comunidade o impediu de se isolar em torres de marfim: suas aulas estavam sempre enraizadas na experiência do culto, na dor da ovelha comum e na necessidade da igreja de se expressar com integridade diante de Deus.

3. Contribuições Literárias e Teológicas: a teologia a serviço da adoração

Von Allmen é amplamente reconhecido por suas contribuições à teologia litúrgica e homilética. Suas obras não são meros tratados técnicos: elas respiram vida, reverência e esperança. Em Teologia da Liturgia, ele articula uma visão do culto cristão como o coração pulsante da vida da igreja, onde a Palavra e os sacramentos se entrelaçam como dons de Deus ao seu povo. Rejeitando tanto o ritualismo vazio quanto o subjetivismo emocional, von Allmen insistia que a liturgia precisava ser teológica — e que a teologia, por sua vez, precisava ser celebrativa. Seu livro Vocabulário Bíblico da Pregação tornou-se um recurso indispensável para pregadores reformados e ecumênicos, oferecendo não apenas definições conceituais, mas uma verdadeira espiritualidade do texto bíblico. Ao tratar da pregação, liturgia, oração e sacramentos, sua teologia evocava uma espiritualidade madura e enraizada, capaz de sustentar a fé em tempos de dispersão cultural e secularização.

Diálogo Ecumênico e Influência Internacional: pontes sobre águas antigas

Ao longo de sua trajetória, Jean-Jacques von Allmen demonstrou profunda abertura ao diálogo ecumênico. Participou de eventos do Conselho Mundial de Igrejas e contribuiu para a renovação litúrgica tanto em círculos reformados quanto católicos. Sua teologia, sem diluir convicções, procurava sempre construir pontes: entre o antigo e o novo, entre a tradição e a renovação, entre a verdade e a beleza. Atuou como professor no Instituto Ecumênico de Bossey, na Suíça, onde formou gerações de líderes cristãos de diversas tradições. Sua influência estendeu-se além da Europa: nos Estados Unidos, América Latina e África, muitos tradutores e teólogos beberam de suas obras como fontes confiáveis para um culto renovado. Ele era, ao mesmo tempo, um teólogo reformado profundamente comprometido com sua herança confessional e um peregrino em direção à unidade visível da igreja.

Uma Fé Encarnada no Cotidiano: entre a Palavra e o pão

Von Allmen rejeitava qualquer espiritualidade desencarnada. Para ele, o verdadeiro culto cristão não terminava no "amém" do domingo, mas desdobrava-se em gestos concretos de justiça, hospitalidade e esperança durante a semana. Em um tempo em que a fé cristã era frequentemente marginalizada ou ritualizada, ele via no culto bem orientado uma arma contra o desespero moderno. Seu legado é também um convite a uma espiritualidade mais robusta, onde a Escritura é proclamada com profundidade, os sacramentos são celebrados com reverência e o serviço ao próximo se torna consequência lógica do encontro com Deus. Sua vida simples, sem ostentação, foi marcada por coerência entre o que pregava e o que vivia. Até sua morte em 1994, Jean-Jacques von Allmen continuou sendo voz profética e pastoral, encorajando a igreja a reencontrar o centro da adoração: o Cristo vivo.

Críticas e Tensões de Sua Época: o culto entre o dogma e a cultura

Embora admirado por sua clareza teológica e sensibilidade pastoral, von Allmen também enfrentou críticas em sua época. Alguns teólogos mais sistemáticos o acusaram de fazer uma teologia litúrgica excessivamente simbólica, que não dialogava suficientemente com os grandes sistemas dogmáticos. Outros, mais engajados politicamente, o consideravam tímido diante das urgências sociais de seu tempo, especialmente nas décadas de 1960 e 70, quando a teologia da libertação emergia na América Latina. Seu estilo litúrgico, marcado pela reverência e solenidade, foi considerado por alguns como um obstáculo à “liberdade do Espírito”. No entanto, mesmo entre os críticos, havia reconhecimento de sua integridade intelectual e da importância de sua obra para manter viva a dimensão do mistério e da celebração no cristianismo moderno.

Avaliação Crítica Atual: entre a relevância e o redescobrimento

Hoje, a obra de Jean-Jacques von Allmen é frequentemente revisitada em contextos de redescobrimento litúrgico. Em um tempo de polarizações e culto ao entretenimento, sua insistência na centralidade da Palavra e na sacralidade do culto ressoa como advertência e guia. Por outro lado, algumas de suas categorias litúrgicas e formulações eclesiológicas carecem de atualização para dialogar com uma igreja pós-cristandade e pluricultural. A ausência de uma abordagem mais interdisciplinar e a relativa distância dos debates sobre justiça social também são apontadas por estudiosos contemporâneos como limitações do seu pensamento. Ainda assim, seu chamado à reverência, sua defesa do culto como espaço de escuta e sua fidelidade à Palavra permanecem poderosamente atuais. Ele nos lembra que, por trás da homilia e do pão, está o Deus que continua vindo ao nosso encontro.

Entre a Mesa e o Mundo: A Herança Incompleta de Von Allmen

Jean-Jacques von Allmen ofereceu à igreja contemporânea um convite raro: reencontrar-se com sua identidade mais profunda por meio da liturgia. Em uma época em que a adoração foi empurrada para os bastidores da teologia, ele a colocou novamente no centro, insistindo que o culto cristão não é mero símbolo ou tradição, mas o próprio ato no qual Deus se revela, comunica e transforma.

Seu pensamento, porém, carrega tensões que não podem ser ignoradas. Ao concentrar-se na liturgia como eixo da fé, correu o risco de subestimar os embates éticos, políticos e culturais que desafiam a vivência cristã no cotidiano. Sua crítica ao individualismo devocional e ao culto como performance permanece atual, mas sua proposta exige uma contextualização maior nos cenários multiculturais e globalizados de hoje.

Von Allmen nos ensina que o culto verdadeiro nasce da Palavra, é sustentado pela graça e desagua em missão. Ele nos convida a uma espiritualidade menos centrada no eu e mais enraizada na comunhão. Mas também nos obriga a perguntar: que tipo de liturgia comunica o Evangelho em meio às ruínas modernas? Como tornar a adoração cristã compreensível e fiel em tempos de desritualização?

Seu legado, assim, não está em oferecer respostas prontas, mas em abrir um caminho — entre a mesa do Senhor e as estradas do mundo — onde o culto se torna semente do Reino e o silêncio da liturgia, um clamor por transformação.



Bibliografia (Estilo ABNT)

ALLMEN, Jean-Jacques von. Homilética. São Leopoldo: Sinodal, 1980.

______. Vocabulário Bíblico da Pregação. São Leopoldo: Sinodal, 1984.

______. Teologia da Liturgia. São Paulo: Loyola, 1990.

GONZÁLEZ, Justo L. Dicionário dos Intérpretes da Fé. São Paulo: Vida Nova, 2021.

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