Matthew Henry

 


A Palavra Explicada com o Coração

A biografia do homem por trás de um dos comentários bíblicos mais lidos da história.

Compilação e Edição: Aristarco Coelho


Nascido nas Fronteiras: A Infância de um Frágil Prometido

Matthew Henry nasceu em 18 de outubro de 1662, em Broad Oak, uma vila situada entre as fronteiras da Inglaterra e do País de Gales. Era um tempo turbulento. Naquele mesmo ano, o Ato de Uniformidade imposto por Carlos II havia silenciado mais de dois mil ministros puritanos. Seu pai, Philip Henry, foi um desses. Um homem piedoso e convicto, expulso da Igreja da Inglaterra por não se curvar às exigências políticas e litúrgicas da monarquia.

Matthew veio ao mundo em meio a esse clima de tensão e marginalização religiosa. Tão frágil ao nascer que foi batizado no primeiro dia de vida, temendo-se que não sobrevivesse à semana. Mas Deus, que faz sua força brilhar na fraqueza, preservou aquele menino. Sua fragilidade física contrastava com uma mente ágil e uma alma sedenta de Deus. Aos três anos, já recitava passagens bíblicas com impressionante clareza.

A casa dos Henry era modesta em posses, mas rica em devoção. A oração era o alicerce do lar. A Bíblia, o centro das conversas. Não é exagero dizer que a formação de Matthew começou nos joelhos do pai e na sala de estar da fé.

O Forjar da Vocação: Conversão e Chamado ao Ministério

Sua conversão pessoal ocorreu por volta dos dez anos de idade, em 1672 — um marco que ele jamais esqueceu. A fé herdada tornou-se fé abraçada. O discipulado paterno se intensificou. Até os dezoito anos, Matthew foi educado em casa por Philip, que combinava firmeza doutrinária com ternura pastoral. Era um aprendizado feito de livros, mas também de lágrimas e testemunho.

Entretanto, como dissidente religioso, Matthew estava impedido de estudar nas universidades oficiais de Oxford e Cambridge. Em 1680, ingressou em uma das chamadas “academias dissidentes”, em Islington, voltadas à formação de jovens puritanos excluídos do sistema oficial. Lá, aprofundou-se em teologia, línguas bíblicas e filosofia. Não buscava prestígio intelectual, mas fidelidade ao chamado.

O espírito que nele habitava era irrequieto quanto à verdade. Em Londres, ouviu pregadores renomados, como Edward Stillingfleet e John Tillotson, e participou de um pequeno grupo de oração e estudo bíblico — uma espécie de embrião do futuro “Clube Santo” de Wesley. Mas o seu coração não encontrava repouso senão na obra pastoral.

Pastor dos Simples, Teólogo dos Profundos

Em 1687, aos 25 anos, foi consagrado de forma privada ao ministério, pois os dissidentes ainda não tinham liberdade plena. Só em 1702 recebeu licença oficial para exercer sua vocação publicamente. Estabeleceu-se como pastor em Chester, onde ficou por 25 anos. Sua pregação era bíblica, calorosa e pastoral. Rejeitava disputas partidárias e dirigia-se às consciências — fosse do erudito ou do analfabeto, do nobre ou do servo.

Casou-se duas vezes e teve nove filhos, dos quais apenas três sobreviveram. As dores familiares temperaram seu coração com compaixão e urgência. Ele conhecia, por experiência, tanto a graça que consola quanto o silêncio que fere. Cada manhã, começava o dia com oração e leitura do Antigo Testamento; à tarde, mergulhava no Novo. Seu púlpito era apenas a extensão de seu altar doméstico.

Henry não era um teórico da fé. Seus sermões e escritos nasciam do chão da vida. Suas palavras tinham raízes em lágrimas e asas de esperança. Por isso sua teologia era amada por agricultores, viúvas, comerciantes, jovens e estudiosos — todos encontravam nela a linguagem da alma.

O Comentário que Nunca Morre

Após sobreviver a uma enfermidade grave em 1704, Henry entendeu que Deus o chamava a um novo empreendimento: escrever um comentário expositivo de toda a Bíblia. Começou pelo Novo Testamento, depois avançou ao Antigo. O projeto consumiu seus últimos dez anos de vida. Produziu seis volumes com profundidade devocional, clareza pastoral e fidelidade doutrinária.

Não era um acadêmico recluso. Escrevia para o povo. Mas sua erudição era inegável: dominava o hebraico e o grego, citava os pais da igreja, raciocinava com lógica puritana. Seu comentário bíblico não era uma obra fria de crítica, mas um solo fértil para sermões, orações e conselhos espirituais.

Quando morreu repentinamente em 22 de junho de 1714, aos 52 anos, estava em viagem para pregar. Morrera como viveu: servindo. Amigos e admiradores concluíram o restante do comentário com base em seus esboços. Séculos depois, Charles Spurgeon afirmou: “Todo ministro deve ler Matthew Henry completamente, uma vez na vida, de joelhos”.

A Voz que Ecoou Séculos: Recepção e Influência Póstuma

A morte de Matthew Henry não foi o fim de sua obra — foi apenas o início de sua longevidade espiritual. Seu comentário bíblico foi amplamente publicado, traduzido e adotado como referência por pregadores, missionários, estudiosos e leigos ao redor do mundo. O que começou como meditações pastorais tornou-se um farol exegético para os séculos seguintes.

George Whitefield lia trechos do comentário de Henry de joelhos, antes de pregar. Charles Spurgeon recomendava que todos os ministros o lessem integralmente ao menos uma vez na vida. John Wesley afirmou que Henry havia escrito “não apenas com clareza, mas com unção”.

Nos lares puritanos da Inglaterra e da América colonial, a Bíblia frequentemente era acompanhada por um único livro auxiliar: o comentário de Matthew Henry. Era alimento para a alma em tempos de perseguição, consolo em épocas de luto, direção em momentos de dúvida. Mesmo no século XXI, sua obra continua sendo lida com proveito por quem deseja ouvir a voz das Escrituras em chave devocional.

Críticos e Opositores de Seu Tempo

Nem todos, porém, viram em Matthew Henry um aliado. Em uma época marcada por disputas confessionais e tensões políticas, sua condição de “dissidente” — fora da Igreja Anglicana — ainda causava desconfiança. Embora sua postura fosse notavelmente conciliadora, houve quem o acusasse de leniência teológica por evitar polêmicas diretas com os anglicanos. Outros o criticavam por supostamente suavizar questões escatológicas e eclesiológicas em nome da unidade pastoral.

Por outro lado, entre os mais radicais dentro do próprio movimento puritano, Henry foi criticado por não assumir posturas mais combativas contra o sistema monárquico e episcopal. Alguns desejavam que ele transformasse o púlpito em trincheira. Mas Henry não se deixou moldar por nenhum extremo. Seu compromisso era com o Reino de Deus — não com rótulos políticos ou facções religiosas.

Também não escapou à crítica dos acadêmicos de sua época. Por privilegiar a clareza devocional em detrimento de sistematizações filosóficas, foi por vezes ignorado pelas elites intelectuais. No entanto, o povo o lia — e continuou lendo. Isso o consolava mais do que os aplausos das cátedras.

Avaliação Crítica Atual: Entre a Devoção e a Exegese

Nos dias atuais, a obra de Matthew Henry é frequentemente revisitada com olhares mais críticos. Teólogos contemporâneos reconhecem suas contribuições devocionais e seu impacto pastoral, mas apontam limitações quanto à profundidade técnica, especialmente em questões linguísticas mais refinadas, análise literária e contextualizações históricas dos textos bíblicos.

Alguns estudiosos modernos consideram seu estilo excessivamente moralista ou simplificado diante da complexidade exegética exigida por leituras contemporâneas. Além disso, sua visão doutrinária — fortemente influenciada pelo calvinismo puritano — é vista por setores mais pluralistas como demasiadamente restritiva.

No entanto, mesmo entre os críticos, há uma admiração velada por sua coerência e piedade. Poucos conseguiram, como ele, fazer da teologia um exercício de adoração. Sua obra não pretende competir com comentários técnicos, mas caminhar ao lado do leitor comum com sabedoria pastoral. E nisso reside sua força.

Matthew Henry nos lembra que, por trás de cada versículo, há um convite à comunhão com o Deus vivo. E que o melhor comentário bíblico é aquele que não apenas explica o texto — mas transforma o coração.

Um Chamado à Palavra e à Perseverança

A trajetória de Matthew Henry vai além de ser apenas a de um comentarista bíblico brilhante. Ela revela a vida de alguém que escolheu servir de forma discreta, pregar com dedicação e estudar com empenho — mesmo sem promessas de reconhecimento, fartura de recursos ou plena liberdade. Para ele, a Palavra era alimento diário e a oração, sua ferramenta de trabalho. Viveu aos pés da cruz, não em busca de prestígio. E nos ensinou, por meio de sua escrita e conduta, que o discipulado verdadeiro nasce da perseverança.

Em dias como os nossos, marcados pela fascinação por celebridades religiosas e por verdades descartáveis, Henry nos lembra que o verdadeiro impacto está na fidelidade cotidiana. Seu legado nos convida a recolocar as Escrituras no centro da nossa vida pessoal, familiar e comunitária. Ele não queria inovar na teologia, mas sim aprofundar-se espiritualmente — algo que muitos de nós temos deixado de lado.

Quantas vezes os cristãos já deixaram de abrir a Bíblia por acharem que ela é complicada demais? Quantos pregadores a usam como trampolim para suas próprias opiniões em vez de vê-la como fonte viva de verdade? E quantas igrejas trocaram o ensino sólido por frases motivacionais e experiências superficiais? Contra essa corrente, Matthew Henry reforça que a Palavra de Deus é suficiente — e que vale a pena estudá-la com reverência, explicá-la com clareza e vivê-la com integridade.

Ele também nos mostra o valor de servir com constância mesmo quando os frutos parecem escassos. Enfrentando perdas familiares, limitações físicas, perseguições religiosas e isolamento intelectual, Henry permaneceu firme. Escreveu para pessoas que nunca conheceria. Pregou para corações que só o alcançariam por seus escritos. E seu exemplo continua a inspirar, ecoando para cada novo discípulo: continue firme.

Talvez você não tenha sido chamado para escrever um comentário bíblico, mas é chamado a viver uma vida moldada pelas Escrituras. Talvez nunca suba a um púlpito, mas seu lar é um altar. Talvez seu nome nunca esteja em livros ou conferências, mas será lembrado por filhos, amigos e irmãos que viram em você um reflexo da graça de Deus.

Que o exemplo de Matthew Henry nos leve de volta à Palavra. Que nos motive a amar com mais profundidade, estudar com mais dedicação e servir com mais humildade. E que, ao final da caminhada, possamos ouvir do Senhor as palavras que tanto marcaram sua vida:
“Muito bem, servo bom e fiel...” (Mt 25.21)



Bibliografia

HENRY, Matthew. Comentário Bíblico de Matthew Henry. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Mundo Cristão, 2005. 6 v.

SPURGEON, Charles Haddon. O Comentário de Spurgeon sobre o Novo Testamento. São Paulo: PES, 2009.

DALLIMORE, Arnold A. George Whitefield: A Vida e os Tempos do Grande Evangelista do Século XVIII – Volume 2. São José dos Campos: Editora Fiel, 2010.

NOLL, Mark A. O Surgimento do Evangelicalismo: A Era de Edwards, Whitefield e dos Wesley. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

WESLEY, John. Sermões. São Paulo: Ed. Editeo, 2010. (Coleção Clássicos do Cristianismo).

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